domingo, 8 de novembro de 2009

Read Magic! - A Estética Mutante do D&D

Pessoal, já faz algum tempo que me deparei com este texto, e posso dizer que me identifico muito com ele, mesmo sendo de 2006. Claro que muitas das afirmações feitas pelo escritor (Trollsmyth) são pontos de vista dele, e não podemos generalizar as coisas. As características apontadas podem estar presentes em ambos os estilos de desenho, mas o fato é que certas características são predominantes em determinados estilos, variando por diversos motivos: público alvo, influências da época, a empresa contratante, etc. Mandei um email para o Trollsmyth falando da possibilidade de traduzir o texto dele, e mediante aprovação, cá estou com este artigo muito interessante! Caso queiram ver o texto original, cliquem aqui. Recomendo também que abram as gravuras em novas abas/janelas, já que o texto é grande.

A Estética Mutante do D&D

Tenho pensado muito recentemente sobre arte e RPG. Ultimamente, os dois se fundiram em uma discussão no RPG.net sobre o surpreendente interesse renovado no 1ed AD&D. Entre as diferenças da 1ª para a 3ª edição que foram discutidas estava o tema da estética adotada pelos respectivos jogos. Se você folhar pelo livro de regras, é nítido ver a diferença da “vibração” de cada jogo, e isso vai muito além de “colorido” vs “preto-e-branco”. Onde os heróis retratados nos livros novos são jovens, bem apresentados e heróicos, a arte da 1ª edição mostra mercenários imundos e gananciosos, geralmente engajados em combate e as vezes até mesmo carregando imundice e cicatrizes esperadas de quem se aventura em dungeons.Existe uma moral ambivalente também. É fácil dizer quem é o vilão e quem é o herói na arte da 3ed. Os caras malvados, sempre NPCs, são sombrios, muitas vezes deformados, com sorrisos maquiavélicos e curvados, enquanto os heróis são altos, entrando em ação, geralmente com cores brilhantes e rostos limpos.A arte na 1ed não é tão clara. Um exemplo clássico é “Emirikol the Chaotic”, do Trampier, encontrada na página 193 do Dungeon Master Guide [N.T: existe uma outra versão desta figura na página 139 do Players revisado da 2ed]. Um mago barbudo galopa por uma rua estreita, seu manto ao vento. Nós assumimos que este seja Emirikol. Ele esta virado para lançar uma magia em um besteiro atrás dele. Um guarda da cidade? Talvez, já que outro sujeito com equipamento semelhante salta da porta do Green Griffon, sacando sua espada para interceptar o feiticeiro. Outro homem barbudo faz uma carranca perante a cena, da segurança da entrada do Green Griffon enquanto outro pobre companheiro arde em chamas no chão, possivelmente outra vítima da magia de Emirikol. Cidadãos apavorados fogem do local. O que esta acontecendo aqui? Por que Emirikol esta correndo numa batalha contra guerreiros? Eles são guardas da cidade, tentando prevenir um crime ou capturar um criminoso? Ou eles são os criminosos tentando assassinar o Emirikol? Quem são os heróis? Quem são os vilões? Existe algum herói, ou todos são vilões? Não há respostas claras. Temos apenas uma cena de ação, desprovida de qualquer contexto moral. Diabos, nem ao menos sabemos se o cavaleiro barbudo é, de fato, Emirikol.

O que segue vem em grande parte de meus posts no RPG.net. Tentei comentar sobre o que vejo como as maiores diferenças em tom alcançadas pela arte da 1ª e 3ª edição do D&D, focando principalmente nos livros do jogador e do mestre. Também dei alguns “chutes” sobre a possível razão destas diferenças.

Sinto que muitas das mudanças na estética podem ser explicadas como uma colisão entre os interesses corporativos da TSR por volta da 2ed e das tendências gerais na literatura fantástica. Do lado da TSR, ouve claramente um afastamento da moral ambivalente da 1ed. A 2ed não apenas assumiu que os PCs seriam heróis bonzinhos, como ativamente enfraqueceu os vilões (não há nada mais patético do que um necromante da 2ed criado pelo Livro do Jogador) e diluiu os poderes do mal. É claro dos primórdios da 2ed que a TSR queria que os “demons” e “devils” da 1ed simplesmente fossem embora, como o Assassino [N.T: por isso, trocaram seus nomes para “Tanar’ri e Baatezu, respectivamente]. Empurrando a idéia de “heróis do bem sempre triunfando sobre o mal” foi uma tentativa de isolar a companhia contra a síndrome da “mãe furiosa”. No fim, o crescimento cultural irrelevante dos RPGs combinaria com esta estratégia para isolar a TSR não apenas das mães furiosas, mas também os consumidores, que sempre ficariam tentados pelos anti-heróis sombrios do “World of Darkness” da White Wolf.

A literatura fantástica na época da 1ed era um gênero sombrio. Apesar do “lugar central” antes ocupado por Tolkien e Lewis, a fantasia foi dominada por heróis populares vindos de revistas. Estes heróis incluem Conan, Elric, e Fafhrd e o Grey Mouser (citados freqüentemente por Gygax como inspiração pessoal). Estes heróis são violentos e sem muitos pudores, intimidadores e muitas vezes sujos e em perigo. A arte da 1ed reflete isso. As tavernas da 1ed estão cheias de mocinhas de formas generosas conversando com heróis festejando (geralmente homens), e as armaduras pesadas, geralmente historicamente corretas ou volumosas, são comuns, e nudez e atos de violência abundam.


Na época em que a 3ed foi lançada, a fantasia havia mudado. Muito. Enquanto alguns da “velha guarda” como Conan e Elric ainda eram respeitados, outros foram esquecidos, como os heróis de Lankhmar de Lieber e Kane de Wagner. Outros foram abertamente insultados, como as novelas de Gor, de Norman. Autores como Robert Jordan, Weis e Hickman, Elizabeth Moon, Marion Zimmer Bradley e Terry Pratchet transformaram o gênero. Onde antes os heróis “pulp” eram aventureiros vigorosos, traçando seus caminhos por mundos indiferentes apenas com suas espadas e perspicácia, os novos heróis eram compassivos e preocupados. Lutavam não apenas riqueza e aventura, mas por causas que eles acreditavam. Muitos eram heróis por acaso, arrancados de suas vidas confortáveis por eventos além de seu controle e colocados no caminho da aventura. A maioria queria simplesmente retornar as coisas a um status quo pacífico e próspero, e viver uma vida calma e despretensiosa.Estes heróis eram na maioria pessoas jovens, incertas de seu papel na sociedade [N.T: podemos observar isso em Tanis, de Dragonlance, ou em Rincewind, de Discworld].


Mais uma vez, a arte reflete isso. A arte da 3ed carece dos vagabundos maltrapilhos da arte da 1ed, substituídos pelas “pessoas belas” da TV e filmes. Também se foi a casual crueldade e grande parte da indecência. Os heróis são alegres e brilhantes, ou carrancudos e determinados. Enquanto os ladrões sem nome da 1ed regojizam-se com um tesouro recém descoberto, o lampejo de avareza claramente em seus olhos e o sangue algumas vezes ainda fresco em suas lâminas, a gatinha halfling alegre sorri para a única, apesar de grande, moeda em sua mão, brilhando com a satisfação de ter derrotado a engenhosa armadilha da arca.A ação tem um estilo mais cinemático e extremo. Enquanto na 1ed você via um heróico grupo espalhado em volta de um dragão, arcos preparados e espadas em ação, na 3ed os aventureiros estão pendurados numa ponte quebrada, ameaçados tanto pelo penhasco abismal abaixo deles quanto pelo dragão furioso acima. E não há uma gota de sangue a ser vista.

Sim, anime e quadrinhos tiveram sua influência, mas não tanto quanto filmes e a TV, creio. Os heróis sem cicatrizes devem mais a “90210” [N.T: aqui, “Barrados no Baile”] do que a “Record of Lodoss War”, em minha opinião. O estilo “mural de ação” que aparece nos livros de Eberron, assim como o efeito descolado de “lentes”, são também um apelo à imaginação cinemática dos fãs de hoje em dia de filmes de ação e jogos de videogame.

Seria uma surpresa, então, que os “veteranos” recuem em desgosto? Eles ainda revivem seus sonhos no “Thieves World” de percorrer por tronos brutais e gananciosos, cheios de jóias, em suas sandálias de couro. Desejam entalhar seus próprios caminhos em seus mundos de fantasia com espada e magia, sangue e determinação. Eles atacam os poderes saqueando templos e evitando os guardas da cidade. Eles não querem resgatar os órfãos, ajudar o bondoso rei Lomipop, ou construir casas para os desabrigados. Eles certamente não querem SER os guardas da cidade, inaptos e desajeitados, ou corruptos e cruéis. Pelo menos, é assim que costumava ser...

Onde a 3ed melhorou sobre a 1ed ao limpar certos “joguismos” que nunca fizeram sentido e deram aos guerreiros uma razão para continuar se aventurando além do 10º nível, ela também mantém as pretensões do “bonzinho” da 2ed. O sentimento de luta suja dos anos que passaram foi substituído por contabilidade de Talentos e Classes de Prestígio. Concordo que estes talentos e classes de prestigio resolvem alguns dos problemas da mecânica do AD&D. Mas também mudam o “feeling” do jogo, e como ele é jogado. Aumentaram a complexidade, e tornaram mais difícil para os DMs que criam aventuras na hora, “por instinto”, criar uma aventura a partir de apenas algumas anotações e devaneios diurnos.

A verdade é, o AD&D 1ed é um jogo bem diferente da 3ed, portanto não é de se admirar que as pessoas mantenham fortes opiniões em suas preferências, especialmente quando continuam a nos dizer que o jogo é o mesmo, apenas “melhorado”.

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